sexta-feira, 23 de julho de 2010

Última noite em casa

Havia chegado cedo naquele dia, o relógio, ao fundo da escura e fria sala, marcava oito horas, duas a menos do que costumava ver diariamente. Logo jogou sobre a mesa o velho casaco, sujo devido ao uso contínuo, e com olhar penetrante fitou a corrente dourada que ali estava. Tocou com dedos gélidos, a face rubra e direcionou sua atenção à chuva que caía, com pingos pesados, sobre o telhado. Aquele ruído incessante o irritava.
Um rapaz, que se encontrava sentado junto a porta, ousou irromper o silêncio que dominava o recinto:
- Chegou antes do que o costume...
- Isso não lhe diz respeito! - respondeu a voz rouca e firme.
- Sei o que ocorreu, mais uma vez ...
- Já lhe avisei que isso não lhe diz respeito! Cale-se! - novamente retorquiu enfurecido.
- Eu sei o que foi, sei o que foi, sei o que foi ... - prosseguiu o pequeno garoto de feições brandas, que em ritmo de música, gritava afirmações irônicas ao homem.
A brincadeira perdurou por alguns segundos, até que a expressão de ambos mudasse. O menino aparentava, agora, um aspecto sombrio e fechou-se em silêncio. O homem, compenetrado, deixou escorrer, dos olhos inchados, lágrimas de ódio. Por impulso, apertou os punhos e correu em direção a criaturinha maldosa. Em instantes, o chão cobriu-se de cacos de espelho e pequenos respingos de sangue.
Sua mão, ferida, escorreu tremula até a mesa e alcançou a corrente que outrora ali deixara. Apesar de sua delicadeza feminina, cingiu-a no pescoço até que seus movimentos cerrassem a pele. Em minutos, as recentes manchas avermelhadas do objeto, perderam-se em meio ao líquido, quase escarlate, que lentamente corria pelo corpo inerte.
Os três permaneceram quietos ...